domingo, 18 de setembro de 2011

Entrevista com Eric Hobsbawm, por Laura Greenhalg*

Trocando mitos por história

Laura Greenhalg*
14.Set.11 :: Outros autores
Eric HobsbawmEric Hobsbawm é um historiador merecedor de todo o respeito. Num tempo em que a actividade central da grande maioria dos historiadores burgueses consiste na reescrita da história de acordo com as conveniências da ideologia dominante, a sua fidelidade à matriz marxista na investigação e no método serve de exemplo, independentemente das discordâncias que este ou aquele aspecto da sua obra suscitem, discordâncias que ele próprio assume frontalmente: “O que busco é o entendimento da história, e não concordância, aprovação ou comiseração”.
Esta interessante entrevista é um exemplo da importância da reflexão de alguém que conta 94 anos, ou seja, de alguém que nasceu no ano da grande revolução socialista de Outubro.

No livro Globalização, Democracia e Terrorismo, de 2007, o senhor passa para os leitores certo pessimismo ao lhes colocar uma perspectiva crucial e ao mesmo tempo desconfortante: ‘’Não sabemos para onde estamos indo'’, diz, referindo-se aos rumos mundiais. Olhando as últimas décadas pelo retrovisor da história esse sentimento parece ter se intensificado. Em que outros momentos a humanidade viveu períodos marcados por essa mesma sensação de falta de rumos?
Embora existam diferenças entre os países, e também entre as gerações, sobre a percepção do futuro - por exemplo, hoje há visões mais optimistas na China ou no Brasil do que em países da União Europeia e nos Estados Unidos -, ainda assim acredito que, ao pensar seriamente na situação mundial, muita gente experimente esse pessimismo ao qual você se refere. Porque de facto atravessamos um tempo de rápidas transformações e não sabemos para onde estamos indo, mas isso não constitui um elemento novo em tempos críticos. Tempos que nos remetem ao mundo em ruínas depois de 1914, ou mesmo a vários lugares daquela Europa entre duas grandes guerras ou na expectativa de uma terceira. Aqueles anos durante e após a 2ª Guerra foram catastróficos, ali ninguém poderia prever que formato o futuro teria ou mesmo se haveria algum futuro. Cruzamos também os anos da Guerra Fria, sempre assustadores pela possibilidade de uma guerra nuclear. E, mais recentemente, notamos a mesma sensação de desorientação ao vermos como os Estados Unidos mergulharam numa crise económica que até parece ser o breakdown do capitalismo liberal.
Nações saíram empobrecidas, arruinadas mesmo, das guerras mundiais, mas é adequado pensar que havia naqueles escombros o desenho de um futuro?
Sim. Se de um lado o futuro nos era desconhecido e cada vez mais inesperado, havia por outro lado uma ideia mais nítida sobre as opções que se apresentavam. No entreguerras, a escolha principal de um modelo se dava entre o capitalismo reformado e o socialismo com forte planeamento económico - supremacia de mercado sem controlo era algo impensável. Havia ainda a opção entre uma democracia liberal, o fascismo ultranacionalista e o comunismo. Depois de 1945, o mundo claramente se dividiu numa zona de democracia liberal e bem-estar social a partir de um capitalismo reformado, sob a égide dos EUA, e uma zona sob orientação comunista. E havia também uma zona de emancipação de colónias, que era algo indefinido e preocupante. Mas veja que os países poderiam encontrar modelos de desenvolvimento importados do Ocidente, do Leste e até mesmo resultante da combinação dos dois. Hoje esses marcos sinalizadores desapareceram e os “pilotos” que guiariam nossos destinos, também.
Como o senhor avalia o poder das imagens de destruição nos ataques do 11/9 a Nova York, tão repetidas nos últimos dias? Tornaram-se o símbolo de uma guinada histórica, apontando novas relações entre Ocidente e Oriente? Por que imagens do cenário de morte de Bin Laden surtiram menos impacto?
A queda das torres do World Trade Center foi certamente a mais abrangente experiência de catástrofe que se tem na história, inclusive por ter sido acompanhada em cada aparelho de televisão, nos dois hemisférios do planeta. Nunca houve algo assim. E sendo imagens tão dramáticas, não surpreende que ainda causem forte impressão e tenham se convertido em ícones. Agora, elas representam uma guinada histórica? Não tenho dúvida de que os Estados Unidos tratam o 11/9 dessa forma, como um turning point, mas não vejo as coisas desse modo. A não ser pelo fato de que o ataque deu ao governo americano a ocasião perfeita para o país demonstrar sua supremacia militar ao mundo. E com sucesso bastante discutível, diga-se. Já o retrato de Bin Laden morto (que não foi divulgado) talvez fosse uma imagem menos icónica para nós, mas poderia se converter num ícone para o mundo islâmico. Da maneira deles, porque não é costume nesse mundo dar tanta importância a imagens, diferentemente do que fazemos no Ocidente, com nossas camisetas estampando o rosto de Che Guevara.
Mas além da oportunidade de demonstrar poderio militar, os Estados Unidos deram uma guinada na sua política externa a partir de 2001, ajustando o foco naquilo que George W. Bush baptizou como “war on terror”. Outro encaminhamento seria possível?

Eu diria que a política externa americana, depois de 2001, foi parcialmente orientada para a guerra ao terror, e fundamentalmente orientada pela certeza de que o 11/9 trouxe para os EUA a primeira grande oportunidade, depois do colapso soviético, de estabelecer uma supremacia global, combinando poder político-económico e poder militar. Criou-se a situação propícia para espalhar e reforçar bases militares americanas na Ásia central, ainda uma região muito ligada à Rússia. Sob esse aspecto, houve uma confluência de objectivos - combate-se o inimigo ampliando enormemente a presença militar americana. Mas, sob outro aspecto, esses objectivos conflituaram. A guerra no Iraque, que no fundo nada tinha a ver com a Al-Qaeda, consumiu atenção e uma enormidade de recursos dos EUA, e ainda permitiu à organização liderada por Bin Laden criar bases não só no Iraque, mas no Paquistão e extensões pelo Oriente Médio.
Os Estados Unidos lançaram-se nessa campanha sabendo o tamanho do inimigo?
O perigo do terrorismo islâmico ficou exagerado, a meu ver. Ele matou milhares de pessoas, é certo, mas o risco para a vida e a sobrevivência da humanidade que ele possa representar é muito menor do que o que se estima. Exemplo disso são as importantes mudanças que ocorreram neste ano no mundo árabe, mudanças que nada devem ao terrorismo islâmico. E não só: elas o deixaram à margem. Agora, o mais duradouro efeito da war on terror, aliás, uma expressão que os diplomatas americanos finalmente estão abandonando, terá sido permitir que os Estados Unidos revivessem a prática da tortura, bem como permitir que os cidadãos fossem alvo de vigilância oficial. Isso, claro, sem falar das medidas que fazem com que a vida das pessoas fique mais desconfortável, como ao viajar de avião.
Diante dos problemas económicos que hoje afligem os Estados Unidos, ainda sem um horizonte de recuperação à vista, o senhor diria que seguimos em direcção a um tempo de declínio da hegemonia americana?
Nós de facto caminhamos em direcção à Era do Declínio Americano. As guerras dos últimos dez anos demonstram como vem falhando a tentativa americana de consolidar sua solitária hegemonia mundial. Isso porque o mundo hoje é politicamente pluralista, e não monopolista. Junto com toda a região que alavancou a industrialização na passagem do século 19 para o século 20, hoje a América assiste à mudança do centro de gravidade económica do Atlântico Norte para o Leste e o Sul. Enquanto o Ocidente vive sua maior crise desde os anos 30, a economia global ainda assim continua a crescer, empurrada pela China e também pelos outros Brics. Ainda assim, não devemos subestimar os Estados Unidos. Qualquer que venha a ser a configuração do mundo no futuro, eles ainda se manterão como um grande país e não apenas porque são a terceira população do planeta. Ainda vão desfrutar, por um bom tempo, da notável acumulação científica que conseguiram fazer, além de todo o soft power global representado por sua indústria cultural, seus filmes, sua música, etc.
Não só por desdobramentos político-militares do 11/9, mas também pela emergência de novos actores no mundo globalizado, criam-se situações bem desafiadoras. Por exemplo, o que o Ocidente sabe do Islão? E dos países árabes que hoje se levantam contra seus regimes? Qual é o grau de entendimento da China? Enfim, o Ocidente enfrenta dificuldades decorrentes de uma certa superioridade cultural ou arrogância histórica?
Ao longo de toda uma era de dominação, o Ocidente não só assumiu que seus triunfos são maiores do que os de qualquer outra civilização, e que suas conquistas são superiores, como também que não haveria outro caminho a seguir. Portanto, ao Ocidente restaria unicamente ser imitado. Quando aconteciam falhas nesse processo de imitação, isso só reforçava nosso senso de superioridade cultural e arrogância histórica. Assim, países consolidados em termos territoriais e políticos, monopolizando autoridade e poder, olharam de cima para baixo para países que aparentemente estavam falhando na busca de uma organização nas mesmas linhas. Países com instituições democráticas liberais também olharam de cima para baixo para países que não as tinham. Políticos do Ocidente passaram a pensar democracia como uma espécie de contabilidade de cidadãos em termos de maiorias e minorias, negando inclusive a essência histórica da democracia. E os colonizadores europeus também se acharam no direito de olhar populações locais de cima para baixo, subjugando-as ou até erradicando-as, mesmo quando viam que aqueles modos de vida originais eram muito mais adequados ao meio ambiente das colónias do que os modos de vida trazidos de fora. Tudo isso fez com que o Ocidente realmente desenvolvesse essa dificuldade de entender e apreciar avanços que não fossem os próprios.
Essa superioridade do Ocidente pode mudar com a emergência de uma potência como a China?
Mas mesmo a China, que no passado remoto era tida como uma civilização superior, foi subestimada por longo tempo. Só depois da 2ª Guerra é que seus avanços em ciência e tecnologia começaram a ser reconhecidos. E só recentemente historiadores têm levantado as extraordinárias contribuições chinesas até o século 19. Veja bem, ainda não sabemos em que medida a cultura, a língua e mesmo as práticas espirituais da Pérsia, hoje Irão, enfim, em que medida aquele fraco e frequentemente conquistado império influenciou uma grande parte da Ásia, do Império Otomano até as fronteiras da China. Sabemos? Temos grande dificuldade em compreender a natureza das sociedades nómadas, bem como sua interacção com sociedades agrícolas assentadas, e hoje a falta dessa compreensão torna quase impossível traduzir o que se passa em vastas áreas da África e da região do Sara, por exemplo, no Sudão e na Somália. A política internacional fica completamente perdida quando confrontada por sociedades que rejeitam qualquer tipo de estado territorial ou poder superior ao do clã ou da tribo, como no Afeganistão e nas terras altas do sudoeste asiático. Hoje achamos que já sabemos muito sobre o Islão, sem nem sequer nos darmos conta que o radicalismo chiita dos aiatolas iranianos e o sonho de restauração do califado por grupos sunitas não são expressões de um Islão tradicional, mas adaptações modernistas, processadas o longo século 20, de uma religião prismática e adaptável.
Com todos esses exemplos de ‘’mundos'’ que se estranham, o senhor diria que a história corre o risco das distorções?
Apesar de todos esses exemplos, sou forçado a admitir que a arrogância histórica ocidental inevitavelmente se enfraquece, excepto em alguns países, entre eles os EUA, cujo senso de identidade colectiva ainda consiste na crença de sua própria superioridade. Nos últimos dez anos, a história tomou outro curso, muito afectada pelas imigrações internacionais que permitem a mulheres e homens de outras culturas virem para os “nossos” países. Dou um exemplo: hoje a informação municipal na região de Londres onde vivo está disponível não apenas em inglês, mas em albanês, chinês, somali e urdu. A questão preocupante é que, como reacção a tudo isso, surge também uma xenofobia de carácter populista, que se propaga até nas camadas mais educadas da população. Mas, inegavelmente, numa cidade como Londres ou Nova York, onde a presença dos imigrantes de várias partes é forte, existe hoje um reconhecimento maior da diversidade do mundo do que se tinha no passado. Turistas que buscam destinos na Ásia, África ou até mesmo no Caribe costumam não entender a natureza das sociedades que cercam seus hotéis, mas jovens mulheres e homens que hoje viajam, em trabalho ou estudos, para esses lugares, já criam outra compreensão. Em resumo, apesar da expansão de xenofobia, há motivos para optimismo porque a compreensão abrangente do nosso tempo complexo requer mais do que conhecimento ou admiração por outras culturas. Requer conhecimento, estudo e, não menos importante, imaginação.

Imaginação?
Sim, porque essa compreensão abrangente é frequentemente dificultada pelo persistente hábito de políticos e generais passarem por cima do passado. O Afeganistão é um clamoroso exemplo do que estou dizendo. Temo que não seja o único.

Na sua opinião, estaríamos atravessando um momento regressivo da humanidade quando fundamentalismos religiosos impõem visões de mundo e modos de vida?
O que vem a ser um momento regressivo? Esta é a pergunta que faço. Não acredito que nossa civilização esteja encarando séculos de regressão como ocorreu na Europa Ocidental depois da queda do Império Romano. Por outro lado, devemos abandonar a antiga crença de que o progresso moral e político seja tão inevitável quanto o progresso científico, técnico e material. Essa crença tinha alguma base no século 19. Hoje o problema real que se coloca, o maior deles, é que o poder do progresso material e tecnocientífico, baseado em crescente e acelerado crescimento económico, num sistema capitalista sem controlo, gera uma crise global de meio ambiente que coloca a humanidade em risco. E, à falta de uma entidade internacional efectiva no plano da tomada de decisão, nem o conhecimento consolidado do que fazer, nem o desejo político de governos nacionais de fazer alguma coisa estão presentes. Esse vazio decisório e de acção pode, sim, levar o nosso século para um momento regressivo. E certamente isso tem a ver com aquele “sentido de desorientação” que discutimos no início da entrevista.
Apoiado na sua longa trajectória académica, que conselhos o senhor daria aos jovens historiadores de hoje?
Hoje pesquisar e escrever a história são actividades fundamentais, e a missão mais importante dos historiadores é combater mitos ideológicos, boa parte deles de feitio nacionalista e religioso. Combater mitos para substituí-los justamente por história, com o apoio e o estímulo de muitos governos, inclusive. Se eu fosse jovem o suficiente, gostaria de participar de um excitante projecto interdisciplinar que recorresse à moderna arqueologia e às técnicas de DNA para compor uma história global do desenvolvimento humano, desde quando os primeiros Homo sapiens tenham aparecido na África oriental e como elas se espalharam pelo globo. Agora, se eu fosse um jovem historiador latino-americano, daí eu poderia ser tentado a investigar o impacto do meu continente sobre o resto do mundo. Isso, desde 1492, na era dos descobrimentos, passando pela contribuição material desse continente a tantos países, com metais preciosos, alimentos e remédios, até o efeito da América Latina sobre a cultura moderna e a compreensão do mundo, influenciando intelectuais como Montaigne, Humboldt, Darwin. E, evidentemente, eu pesquisaria a riqueza musical do continente, fosse eu um latino-americano. Isso é tudo o que eu quero dizer.
*Publicada no “Estado de S.Paulo”, 11.09.2011

sábado, 17 de setembro de 2011


O tradicionalismo guasca que esterca as cidades na primavera: a imaterialidade da coisa

TAU GOLIN
Jornalista e historiador

Algo assustador vem ocorrendo gradativamente no Rio Grande do Sul. Um movimento de pressão política e cultural está em vias de subverter completamente o princípio do patrimônio imaterial.

O Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) deseja ser o elemento dessa aberração.

Por óbvio, se poderia considerar “patrimônio imaterial” manifestações culturais, mas não a “entidade” que as promove. Considerar o tradicionalismo, que é uma sociedade privada, organizada na sociedade civil, como “patrimônio imaterial” seria a mesma coisa que reconhecer o Grêmio ou o Internacional como únicas manifestações genuínas e autênticas do futebol. Certamente, se um clube sumir isso não afetará a existência do esporte.

O tradicionalismo é um movimento cívico-cultural organizado em rede, de forma associativa, e de caráter de massa, articulado pela indústria cultural e diversos interesses comerciais, políticos, etc., que, além de milhares de posturas sinceras, especulam com hábitos, costumes e elementos da tradição. Não existe imaterialidade no tradicionalismo. Duvidosamente, a imaterialidade poderia ser encontrada em algumas manifestações utilizadas pelo movimento, entretanto reinterpretadas, agregadas por sentidos contemporâneos, sem sustentação metodológica. Portanto, ainda assim, de forçosa “imaterialidade”. A seleção, a reinterpretação, a reorganização, e o novo sentido agregado, adequado aos interesses do movimento, retiram a sua “imaterialidade”. O motivo: não é mais autêntico; foi tradicionalizada.

Desde os anos 1940, o tradicionalismo vem privatizando uma série de manifestações culturais, hábitos e costumes rio-grandenses. Muitos existiam isolados em regiões remotas. Da tradição foram retirados e reelaborados em uma engrenagem de rede. Um eficiente marketing e práticas de adestramento comportamental encarregaram-se de “educar” os contingentes como se pertencessem a todos os grupos humanos. E o que é pior: como se o RS tivesse um único gentílico formatador gauchesco.

Praticamente todas as manifestações adotadas pelo tradicionalismo já existiam antes do seu aparecimento como entidade privada. Se o tradicionalismo, por sua vez, desaparecer, as realmente importantes continuarão existindo. Patrimônio imaterial é o mate (legado indígena), a culinária, determinadas músicas e danças regionais, etc., e não o tradicionalismo.

Com o sucesso de se transformar em “patrimônio imaterial”, o tradicionalismo chegou ao extremo de sua usurpação da riqueza cultural regional. Ele se converte em “único”, “legítimo” portador dos eventos da identidade. Ele passou a ser o próprio fenômeno. Parece evidente que esta nova expropriação não resiste à História e ao contrato republicano da sociedade contemporânea. A imanência tradicionalista o conduziu à crença de que ele é, em essência, a coisa...

Nessa lógica, a “cidadania” ainda será acusada de crime contra o patrimônio se realizar qualquer crítica a um tradicionalista (em essência, a coisa imaterial), protestar contra seus hábitos de estercar as cidades nos meses de setembro; espancar animais nos rodeios; ou o poder público ficará impossibilitado de realizar alguma reforma urbana porque em determinado lugar existe um galpão com uma placa tosca na fachada escrito CTG, cujas atividades são de duvidoso interesse público.


Passando à imaterialidade, só falta agora o tradicionalismo almejar ser o espírito do rio-grandense.

FONTE:
http://rsinsurgente.blogspot.com/2011/05/o-tradicionalismo-guasca-que-esterca-as.html

sábado, 3 de setembro de 2011

1.1 Agora, é a vez da Síria

30/8/2011, M. K. Bhadrakumar, Voltaire.net

Se a semelhança entre os cenários da devastadora mudança de regime no Iraque e na Líbia significa alguma coisa, o futuro da soberania de Bashar al-Assad na Síria pode estar por um fio. O xis da questão – lembro eu – é que mudar o regime na Síria é providência absolutamente central para todos os objetivos dos EUA no Oriente Médio. As coisas estão de tal modo interligadas, que vários objetivos estratégicos podem ser obtidos numa só cajadada, dentre os quais, e importante, diminuir muito a influência de Rússia e China na região. Não é oportunidade que Washington deixe passar.

A imagens que chegavam de Trípoli ontem eram fantasmas estranhamente semelhantes a outros, já vistos. Buzinas soando, Kalashnikovs disparadas para o ar, jovens e crianças andando sem rumo pelas ruas de casas e prédios em ruínas, fotógrafos e cinegrafistas ocidentais vorazmente recolhendo fragmentos de frases em inglês de pé quebrado, da boca de qualquer personagem local disposto a divulgar os imorredouros ideais da Revolução Francesa de 1789 e da Magna Carta. Outro espaço, outro tempo, as imagens eram as mesmas, mas não se consegue localizá-las exatamente. Poderiam ser fiapo de lembrança, que se esgueira dos porões da mente, ou esquecido ou expulso da consciência? Agora, dia seguinte, já não há dúvida: os canais de televisão reprisaram cenas de Bagdá em 2003.

A narrativa que chegava de Trípoli é extraordinariamente semelhante a que recebemos de Bagdá: um ditador brutal e megalômano, que parecia onipotente, é derrubado pelo povo, e uma onda de euforia varre uma terra exaurida. Com as celebrações, o benefactor-cum-liberator ocidental avança para o centro do palco, assumindo seu posto no ‘lado certo da história’. No século 19, teria dito – no Quênia ou na Índia – que carregava sobre os ombros “a carga que cabe ao homem branco”. Hoje, diz que traz avanços ocidentais a quem clama por eles.

Mas é só questão de tempo, antes que a narrativa esvaia-se, e realidades aterrorizantes se imponham. No Iraque, vimos como uma nação que há apenas 20 anos começava a avançar rumo a padrões de desenvolvimento da OECD foi empurrada de volta à miséria e à anarquia.

Golpe de estado

A oposição democrática líbia é mito fabricado pelos países ocidentais e por governos árabes ‘pró-Ocidente’. Há fissuras profundas dentro da oposição líbia, e facções de todos os tipos, de liberais genuínos a islamistas e ao mais claro lumpenproletariat. E há as divisões entre tribos. As disputas internas entre as várias facções parecem receita para outra rodada de guerra civil, enquanto facções que não têm nem legitimidade nem autoridade disputam o poder.

A dimensão dessas fissuras apareceu muito clara, mês passado, quando o comandante-em-chefe Abdul Fattah Younes foi arrancado do front sob falso pretexto, afastado de seus guarda-costas e brutalmente torturado e morto pelos ‘rebeldes’ militantes de uma facção islamista.

A imprensa ocidental começou a discutir abertamente o papel da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que arquitetou a intervenção e novamente interveio para desequilibrar o poder bélico contra Muammar Gaddafi. A ‘revolução’ mais parece golpe de estado instigado por Grã-Bretanha e França. Mesmo assim, a aliança ocidental precisou de terríveis longos seis meses para levar seus ‘rapazes’ até Trípoli. Gaddafi ainda os mantém ocupados, depois de sua saída em grande estilo. A espantosa verdade é que cabe a Gaddafi decidir quanto parar de lutar, apesar de ter homens e equipamento para prolongar por bom tempo o atual desafio.

O que Gaddafi decida fazer nas próximas horas terá grande influência sobre o acontecerá depois. Se haverá pesado derramamento de sangue, provavelmente haverá vingança dos vitoriosos sobre os vencidos.

Em termos políticos, a queda iminente de Gaddafi não implica vitória da oposição. Sem o apoio tático da OTAN, a oposição teria sido derrotada. A grande questão, portanto, é que papel terá a OTAN, na Líbia, no futuro. E há também a questão de se, agora, a OTAN dirigirá suas atenções à Síria.

A OTAN cerca (e ocupa) o mundo árabe

Cumprida com sucesso a missão de derrubar o governo Gaddafi na Líbia, seria de esperar que OTAN deixasse o teatro líbio. A Resolução n. 1.973 da ONU foi violentada. Mas que ninguém espere a retirada da OTAN. Oleitmotif da intervenção ocidental na Líbia foi o petróleo líbio.

Movimento recente de Gaddafi, de aproximar-se dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) e trazê-los para o setor líbio de petróleo, obviamente ameaçou os interesses ocidentais.

A retórica pró-democracia que emana de Londres e Paris sempre soou como toada oca. A intervenção da OTAN na Líbia extrapolou os limites da legislação internacional e da Carta das Nações Unidas. A OTAN está hoje na ridícula posição de ter de extrair a legitimidade necessária para permanecer na Líbia, dos mesmos sinistros elementos que subiram ao palco como forças ‘democráticas’, mas não têm apoio popular – sob o pretexto de que ainda há trabalho a fazer.

Há, sim, ainda, trabalho a fazer. Pode ser, outra vez, do começo ao fim, o Iraque e o Afeganistão. Mais cedo do que se supõe, aparecerá resistência contra a ocupação estrangeira. As tribos líbias têm fama na história e no folclore da resistência. Por outro lado, um grande paradoxo da geopolítica é que quanto mais se aprofunde a anarquia, mas a ocupação encontra pretexto ideal. A história da Líbia não será diferente da de Iraque e Afeganistão.

A intervenção ocidental na Líbia introduz novos padrões na geopolítica do Oriente Médio e África. Levou a OTAN até o leste do Mediterrâneo e para dentro da África. É parte essencial da estratégia dos EUA pós-Guerra Fria, para converter a aliança transatlântica em organização global com capacidade para atuar nos ‘pontos quentes’ globais, com ou sem autorização da ONU. Não há dúvida alguma de que, no ‘novo Oriente Médio’, a OTAN terá papel de pivô.

É o que já se ouve, com ecos de horripilar, na fala do vice-primeiro ministro britânico Nick Clegg, à primeira vista, sobre a Líbia: “Quero deixar bem claro que a Grã-Bretanha não dará as costas aos milhões de cidadãos dos estados árabes que tentam abrir suas sociedades em busca de vida melhor.” Mas… e se estivesse falando da Síria? Com certeza absoluta, Clegg não estava oferecendo serviços de ‘abertura’ aos cidadãos árabes das sociedades de Arábia Saudita, Bahrain ou Iêmen, para dar às tribos que lá vivem condições de vida europeia moderna.

Com a operação líbia aproximando-se do término, todos os olhos voltam-se para a Síria. O Wall Street Journal especula: “O sucesso dos líbios afeta a rebelião potencialmente mais importante na Síria (…) Já há sinais de que a Líbia inspira os rebeldes que tentam depor [Bashar al] Assad.”[1] Mas acrescenta o detalhe, sem o qual a ideia propagandística não estaria devidamente proposta: “Há diferenças cruciais entre Líbia e Síria, e será difícil replicar em Damasco o modelo da revolução líbia.”

Apostas altas na Síria

Sim, mas a mente ocidental é famosa pela capacidade de inovação. Não há dúvidas de que a Síria está no coração do Oriente Médio e conflitos que irrompam ali quase com certeza engolfarão toda a região – inclusive Israel e, possivelmente, também o Irã e a Turquia.

Por outro lado, os movimentos coordenados do ocidente nas últimas semanas ampliando sanções contra a Síria, são muito semelhantes ao que se viram no prelúdio da intervenção na Líbia. Estão em andamento esforços sustentados para criar uma oposição síria unificada. Semana passada, encontro na Turquia – o terceiro em sequência – finalmente elegeu um ‘conselho’ que ostensivamente representaria a voz do povo sírio. Evidentemente, está em construção, cuidadosamente, um ponto focal, que, em momento conveniente, poderá ser cooptado como do interventor ocidental democrático que representaria a Síria. O apoio da Liga Árabe, para funções de folha de parreira, também está disponível. Os regimes árabes ‘pró-ocidente’ – autocracias – reapareceram à frente da campanha ocidental, como portadores do estandarte da representatividade na Síria.

Pode-se argumentar que a parte mais difícil seria obter mandado da ONU para intervenção ocidental na Síria. Mas a experiência líbia mostra que sempre é possível conseguir um álibi. Para isso, pode-se confiar na Turquia: quando há envolvimento da Turquia, é possível invocar o Estatuto 5 da OTAN.

O xis da questão é que é imperativo derrubar o governo da Síria, para que a estratégia dos EUA no Oriente Médio possa avançar, e Washington não aceitará obstáculos que algum dos BRICS crie, porque o que está em jogo é importante demais. Estão em jogo a expulsão, de Damasco, da liderança do Hamás; o rompimento do eixo sírios-iranianos; o isolamento do Irã, com o correspondente estímulo para derrubar o governo iraniano; enfraquecer e degradar o Hezbollah no Líbano; e reconquistar a dominação estratégica de Israel sobre todo o mundo árabe.

Claro que, na raiz disso tudo, está o controle sobre o petróleo, o qual, como disse George Kennan há 60 anos “é recurso nosso, não deles [dos árabes]”, considerado crucial para manter qualquer esperança de prosperidade sustentada do mundo ocidental. E ria de quem disser que governos ocidentais e seus cidadãos empobrecidos já não teriam apetite para guerras.

Finalmente, tudo isso implica, em termos geopolíticos, a reversão de qualquer influência que russos e chineses tenham obtido no Oriente Médio.

Já está em operação uma sutil propaganda ocidental que pinta Rússia e China como obstáculos à derrubada de governos na região –, porque estariam ‘do lado errado da história’. É esperta virada ideológica na muito bem-sucedida jogada-padrão da Guerra Fria, que jogou o comunismo contra o Islã.

A linguagem corporal nas capitais ocidentais não deixa dúvidas: de modo algum os EUA deixarão escapar a oportunidade que veem hoje, para eles, na Síria.

[1] 23/8/2011, Wall Street Journal, “Lybia and the Arab Spring”, emhttp://online.wsj.com/article/SB10001424053111903461304576524701611118090.html

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Os reflexos sócio-culturais do latifúndio no Rio Grande do Sul

Éric gediel vargas*

Professor da rede pública estadual em Alegrete-RS, Graduado em História pela Unopar. Email: erikbomberman@yahoo.com

Os reflexos sócio-culturais do latifúndio no Rio Grande do Sul

The socio-cultural consequences of the landlordism in the Rio Grande do Sul

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo geral compreender o processo de dominação ideológica que o latifúndio exerce no RS, bem como: conhecer os processos de formação da ideologia do gauchismo, compreender como o gauchismo trabalha para a manutenção do latifúndio e conhecer a sua utilização como estanque da luta de classes. Tais compreensões são encontradas com uma análise histórica sobre como se sedimentaram as bases para a formação da Ideologia Tradicionalista e como ela se sedimentou nos extratos da cultura popular. Observam-se as influências positivistas que norteiam as bases do tradicionalismo, bem como as condições criadas historicamente pela estrutura em sua relação dialética com a superestrutura, que culminaram no atual modelo hegemônico do Tradicionalismo. São analisadas as facetas que compõem a construção da apologética do passado ideal criado e cultuado pela ideologia latifundiária dominante no estado do Rio Grande do Sul.

Palavras-chave: Latifúndio. Tradicionalismo. Ideologia. Estância. Positivismo.

VARGAS, Éric Gediel. Las consecuencias socio-culturales de las Explotaciones grandes en Río Grande do Sul: Alegrete 2010

ABSTRACT

Este trabajo tiene como objetivo comprender el proceso general de dominación ideológica que tiene las grandes explotaciones en la RS. Así como entender los procesos de formación de la ideología de gauchismo entender cómo el gauchismo obras para el mantenimiento de la grande explotacion, y conocer su uso como una lucha de clases estancas. Estos entendimientos se encuentran con un análisis histórico de cómo las bases se consolidaron para formar la ideología tradicional, y se consolidó en los extractos de la cultura popular. Tenga en cuenta las influencias que guían los fundamentos positivistas del tradicionalismo, así como las condiciones históricas creadas por la estructura en su relación dialéctica con la superestructura, que culminó en el actual modelo hegemónico del tradicionalismo. Se analizan las facetas que componen la construcción de la apologética del pasado y hacer ideales creados adorado por los terratenientes ideología dominante en el estado de Rio Grande do Sul.

Key-words: Grandes explotaciones. Tradicionalismo. Ideología. Oficina. El positivismo.

Uma construção histórico ideológica

O latifúndio, palavra derivada do latim, latinfundiu, é uma grande extensão de terras nas mãos de poucos donos, muitas vezes somente de um único proprietário. Forma de designar grandes propriedades que produzem pouco; utilizam-se de métodos produtivos obsoletos; de mão de obra barata que, em geral, não possuem as características de uma moderna propriedade capitalista, apesar, é claro, de se inserir neste modo de produção, peca, no entanto, por não possuir um dinamismo produtivo que o faça competitivo, assim, necessita constante e historicamente de financiamentos e empréstimos governamentais para manter-se.

O latifúndio é marca indelével da região da campanha no estado do Rio Grande do Sul, pois a geografia desta região, marcada por grandes extensões de campos abertos fora ideal para o contexto histórico da formação desta forma de propriedade no estado.

A introdução da pecuária como principal atividade do latifúndio, ou estância como se chama no RS, começou com Cristóbal de Mendonza, padre jesuíta que, no ano de 1634, trouxe da Argentina 1500 cabeças de gado, que distribuiu a criadores, com o objetivo de conter a fome que assolava os povos catecúmenos. As grandes extensões destas estâncias podem ser explicadas pelo fato de que seus limites eram estabelecidos por rios e acidentes geográficos e muito dificilmente se realizava a construção de cercas de pedra e/ou fossas para que o gado não ficasse totalmente livre.

Se tomarmos por base esta apresentação do início do latifúndio no RS, poderemos observar o início das bases para o enraizamento do latifúndio na cultura Rio-grandense.

As estâncias nunca foram indutoras de desenvolvimento ao estado, mesmo em seu auge, pois o estado até o advento de suas incipientes indústrias era bastante atrasado, o próprio estabelecimento da pecuária, como já dito, fora fruto de uma necessidade dos jesuítas em garantir uma fonte de alimentos. Tal característica não se modificou durante o período em que se estabeleceram as condições necessárias para que o latifúndio gaúcho se tornasse economicamente importante para a economia do estado. Sobre estas condições, assim explica Mário J. Maestri Filho (1993, p.39):

O começo de uma produção industrial de charque no sul parece dever-se às sucessivas secas de 1777, 1779, 1792, no nordeste. Até essa época, era o Ceará que fornecia a carne seca, um dos alimentos básicos do escravo, para o mercado nacional e internacional.

Observamos, assim, que esta elite formada pelos latifundiários, no RS, nunca fora uma classe empreendedora, desenvolvimentista para o estado. Sendo assim, os latifundiários/estancieiros gaúchos, depois de construídas suas bases na economia local e de se tornarem a classe dominante do estado, precisavam manter o seu poder de forma a repassar a sua visão de mundo a todas as classes sociais existentes no estado. Tendo uma base econômica que justificasse seu domínio, já que a economia estadual era majoritariamente pastoril, buscava-se agora criar no estado um universo imagético/cultural, onde todas as classes compartilhassem da mesma visão de mundo, ou seja: “exploradores e explorados defendem os mesmos princípios na compreensão do mundo” (GOLIN, 1983, p.13).

Este movimento de dominação por meio da difusão de uma cultura que refletisse a visão de mundo do latifúndio típico do sul do estado determinou a criação de um movimento cultural conhecido como tradicionalismo. O tradicionalismo é um meio de dominação da classe que detinha o poder emanado em sua dominação econômica, sendo assim, este movimento cultural se encontra fazendo parte da superestrutura, estando relacionado com todos os meios de sustentação desta elite agrária. Sendo um meio de dominação cultural, o movimento tradicionalista precisava dos intelectuais regionais a seu serviço, somente assim poderia alcançar abrangência necessária para se enraizar na cultura popular, pois os intelectuais atuam, nos mais diversos meios populares de difusão de ideais, tais como: sindicatos, igrejas, partidos políticos, na educação e nas mais diversas formas de atividades populares.

O tradicionalismo cria uma aura de valores sobre o passado gaúcho que nada tem de encontro com a realidade, é nada menos que uma auto-imagem míope que as classes estancieiras têm de si mesmas, colocam a estância histórica como um exemplo máximo de democracia e de camaradagem nas relações sociais. Ora, como encarar como uma base de cordialidade uma unidade econômica produtiva que se utilizava de mão de obra escrava? E sendo assim, como imaginar tal cordialidade entre senhores e seus escravos? Ou até mesmo entre patrões e peões? Uma relação entre o democrático e o autocrático? Sendo assim, é evidente a reconstrução da história do RS por meio de uma visão apologética da história, onde se resgatam valores nunca existentes, ou seja, reconstrói-se a história com base nos julgamentos morais da atualidade.

Essa dominação cultural estancieira atinge todas as formas em que a superestrutura se apresenta, caracterizando-se assim como uma ideologia, ou seja, a sua difusão tem por base a contensão da luta de classes, pois é embebida de valores de uma classe que tem por intuito retirar qualquer chance de outras classes criarem sua própria consciência.

Sobre a ideologia, Portelli (1993, p.421) diz o seguinte:

A ideologia é o cimento dominante, mas marca também as classes dominadas (impregnando o folclore), ela imprime sua marca ao conjunto das superestruturas políticas, religiosas, culturais e científicas e irriga o conjunto da sociedade civil. Uma classe social, portanto, só pode pretender a hegemonia se dispuser de ideologia própria, orgânica e, principalmente, de uma ideologia cujo nível mais elaborado (a filosofia) possa rivalizar vitoriosamente com outras concepções de mundo.

No ano de 1827, surge o primeiro jornal do estado, com apoio do então Presidente da província, Salvador José Maciel, brigadeiro, que assim selava o início da imprensa no estado, imprensa essa que surge, seu primeiro momento, já atrelada às aspirações de uma classe, já atrelada ao poder. Nesse contexto, surge no estado a literatura, meio que iria sedimentar o tradicionalismo na história cultural do estado.

Na segunda metade do século XIX, com o findar quase total, dos conflitos territoriais, e início do que era ainda uma germinação de luta de classes, esta iniciada pelos imigrantes europeus e a classe dominante, tendo de aprofundar sua dominação ideológica para justificar a sua concepção de mundo e, ao mesmo tempo, fazer com que as classes subalternas também as seguissem em seus preceitos, nesse contexto, fora criado o Paternon Literário, em 1868, em torno, principalmente, de dois fundadores, Caldre e Fião e Apolinário Porto Alegre. Este era o início do regionalismo no RS, uma literatura que detinha todos os aspectos caracterizadores do estado, explorando as tradições gaúchas como um todo, assim, os ideais das classes dominantes foram eternizados sob um manto cultural.

O regionalismo gaúcho, assim como todas as formas de regionalismo que ocorreram nas diversas regiões do Brasil, buscava transplantar para a literatura os conceitos culturais regionais, a exceção era que, no RS, a intenção era eternizar e vulgarizar os valores regionais, seguindo a cartilha dos ideólogos da classe latifundiária dominante. E transplantava-se essa cultura ao mundo da literatura, trazendo consigo toda uma visão apologética das realidades do estado. “Conforme Apolinário Porto Alegre, ao Paternon se procurou “dar uma forma que outrora se ostentou em Atenas” (GOLIN, 1983, p.22).

A literatura proveniente dos intelectuais do Partenon era uma apologia à visão positivista da história, a mesma visão com que as oligarquias latifundiárias envergavam o passado. “Neste sentido, ganharam impulso os registros folclóricos, o culto às tradições e uma preocupação prioritária com os ‘heróis’ e datas cívicas” (GOLIN, 1983, p. 22).

Engana-se quem achar que os intelectuais que formavam o Paternon Literário eram provenientes das classes dominantes, muito pelo contrário, eles eram todos provenientes das classes subalternas, eles eram pobres. O que ocorria era uma verdadeira venda de consciência em troca de uma escalada social, pois todos se utilizaram de seu domínio sobre a literatura como uma alavanca social. Seu trabalho ajudou a criar as condições necessárias à criação, logo mais, do movimento tradicionalista.

No mesmo ano, 1898, é fundado em 22 de maio, na cidade de Porto Alegre, o Grêmio Gaúcho. Inspirado nas idéias do Partenon literário e nas Sociedades Crioulas que existiam no Uruguai, João Cezimbra Jacques, um major, republicano e positivista, cria essa entidade com o intuito de cultuar as tradições gaúchas, tendo como herói e símbolo máximo, o general da revolução Farroupilha, Bento Gonçalves da Silva. Assim sendo, o símbolo máximo deste movimento era um militar/latifundiário.

Uma consolidação superestrutural.

No ano de 1948, o tradicionalismo se reorganiza por meio de um movimento iniciado no colégio Júlio de Castilhos. Liderado por Barbosa Lessa e Paixão Cortes, tinha por objetivo organizar, criar um clube de apologia às ditas “tradições gaúchas”, deste movimento, surgem os CTGs, os Centros de Tradições Gaúchas, que em sua organização já demonstram uma estrutura administrativa que imita a estrutura de poder da estância. Esta estrutura tem, por exemplo, como principal diretor o patrão, seguido do capataz, este do sota capataz e depois pelos posteiros. Em um primeiro momento, os militares presentes nestas organizações eram somente os pertencentes à brigada militar, pois na revisão historiográfica das idéias separatistas, provenientes da má interpretação da Revolução Farroupilha, afastaram os militares do exército, fato hoje superado pelos membros de instituições militares sediadas no estado, pois praticamente todas as unidades militares hoje contam com um “galpão crioulo” dentre suas instalações.

Deste modo, o tradicionalismo unifica as aspirações de heterogêneas partes da sociedade em torno de ideais comuns, quebrando assim aspirações de classe, mantendo a visão de mundo estancieira e, conseqüentemente, mantendo o latifúndio intocável.

O Tradicionalismo corresponde, assim, a uma forma mais que explícita de manter as massas populares a cabresto, sem uma crítica própria sobre o mundo objetivo a sua volta. O Tradicionalismo joga as massas populares para um mundo imaginário, onde as negatividades do mundo das contradições provenientes da práxis capitalista são imperceptíveis; sendo assim, as massas populares são condenadas a uma imobilidade no âmbito da luta de classes.

O Tradicionalismo reproduz valores de uma realidade histórica ligada a um passado de supremacia do latifúndio e toda a vez que se tenta deixar este aspecto bem claro à totalidade das massas, o movimento entra em erupção, pois tenta esconder suas contradições e reais intenções, camuflando-as como parte da cultura popular.

Não é porque determinadas práticas e representações sejam encontradas no “povo”, isto é, nas classes subalternas, que elas são do povo. A cultura popular , ao contrário do que muitos querem, não é composta apenas de elementos de resistência, mas é também composta de elementos de conformismo. (FONSECA, 1994, P.59)

Assim sendo, cada indivíduo que compõe a sociedade, ao aderir a tal movimento, está, mesmo que de forma manipulada, cumprindo sua função de agente social/intelectual, como afirma Gramsci (1992, p.7-8):

[...] todo homem, fora de sua atividade profissional, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um “filósofo”, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção do mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui para manter ou para modificar uma concepção do mundo.

É nas chamadas Região da Fronteira e Fronteira Oeste que o latifúndio exerce sua poderosa influência, nesses locais, há uma grande influência do Movimento Tradicionalista, a ponto de agir sobre o modo de agir e pensar das populações que ali habitam.

Assim o tradicionalismo se abate sobre todas as formas de luta de classes existentes nessas regiões, a ponto de sufocar, por meio se sua ideologia, qualquer foco de obtenção de consciência de classe.

[...] a arte tradicionalista não reflete o peão na sua forma real, como ela realmente se estrutura socialmente, mas sim como o patrão gostaria que fosse. Há a dominância de um naturalismo-positivo, ainda do tempo da conquista, quando o conflito do homem com a natureza superava o do homem com o homem. O maior exemplo nos traz a cidade de Alegrete. Os tradicionalistas levantaram-se, indignados, contra o monumento ao Negrinho do Pastoreio, de Vasco Prado, erguido na Praça Rui Ramos. [...] O talento do artista mostra a realidade do campo rio-grandense. (GOLIN, 1983, p.93-4)

“O cavalo, com formas desproporcionais, mostra que o animal é mais valorizado que o homem, o qual é representado pelo Negrinho, com uma cabeça reduzida, dado ao seu subdesenvolvimento intelectual; a barriga côncava por que tem fome, porque é subnutrido, e seus braços erguidos pedem paz e mostram que ele se libertou dos grilhões que o prendiam a uma economia [...], enquanto que o cavalo alça vôo em direção a Usina Termoelétrica Oswaldo Aranha, localizada perto da praça, que representa um marco de desenvolvimento da região.” (CORREIO DO POVO,1977 apud GOLIN, 1983, p.94)


Referencias bibliográficas:

FONSECA; Virginia Pradelina da Silveira; A hegemonia do latifúndio pastoril e sua relação com a pequena propriedade na fronteira oeste do Rio Grande do Sul; 1994, 139 F; Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Faculdade de História, pós graduação em Sociologia; UFSM; Santa Maria; 1994

GRAMSCI, Antonio; Os intelectuais e a organização da cultura; Rio de Janeiro; Civilização Brasileira; 1992.

GOLIN, Tau; A ideologia do gauchismo; Porto Alegre; Tche; 1983.

MAESTRI FILHO, Mário J. “O escravo africano no Rio Grande do Sul.”, in: DACANAL, José Hildebrando & GONZAGA, Sergius. RS: economia e política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.

PORTELLI, Nughes; Antonio Gramsci, Cadernos da prisão; Rio de Janeiro;Civilização Brasileira; 1993.

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