quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Sociólogo cubano fala das mudanças em curso na Ilha Socialista


imagemCrédito: Cubadebate



O sociólogo cubano Aurelio Alonso afirma que as últimas libertações de presos na Ilha são um sinal de uma mudança de política mais flexível. E defende a ideia de que o socialismo deve se reinventar para os tempos atuais.

A entrevista é de Mercedes López San Miguel e está publicada no Página/12, 16-08-2010. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Como interpreta as solturas anunciadas por Cuba e que começou a levar a cabo com a mediação da Igreja?

Não são as primeiras libertações de presos políticos em Cuba. São presos contra-revolucionários aos quais se atribuem causas que vão além do pensamento: causas muito vinculadas a ações precisas. Quando o papa João Paulo II visitou o nosso país houve uma soltura importante por solicitação do Vaticano.

São momentos históricos diferentes...

Sim, mas o fato novo não é a libertação, mas que pela primeira vez se reconhece à Igreja um papel de mediador e a Igreja assume esse papel com uma motivação humanitária. O regime cubano foi, às vezes, muito duro quanto a admitir o critério de oposição. Penso que se isto for um sinal de que haverá uma mudança de política na direção de maiores flexibilidades é muito melhor.

Você os considera “presos políticos”?

Sim e não. Em Cuba há uma série de crimes que são definidos e demarcados em uma Constituição e também definidos por uma trajetória histórica. São cinquenta anos de uma política de cerco e de hostilidades dos Estados Unidos. Por exemplo, na visão das autoridades cubanas, a vinculação com a embaixada norte-americana é uma vinculação com o inimigo. Os Estados Unidos se definem como inimigo em relação conosco. São presos políticos e se definem como presos contrários ao regime. Eu não lembro que se tenha podido atribuir cumplicidade ou responsabilidade a Cuba em nenhum ato de terrorismo; no entanto, os Estados Unidos dão um tratamento preferencial a Posada Carriles, um conotado terrorista.

Há as Damas de Branco, também aqueles que se definem como jornalistas e conseguem o apoio de organizações de jornalistas no mundo e que os assinalam como presos de consciência. Como é a vida em Cuba em relação aos que criticam ou se opõem à revolução?

Penso que a política cubana e a filosofia sobre a qual esta se constrói têm que avançar para níveis maiores de tolerância das posições que se opõem e que pensam de maneira diferente. Me lembro de uma frase de Jean-Paul Sartre quando visitou Cuba: “Não me preocupo tanto com o fato de que os opositores não possam se pronunciar, mas com o fato de que os que são favoráveis não possam se pronunciar”.

Como foi fazer parte da experiência da revista Pensamiento Crítico?

Um grupo de jovens se dedicou ao estudo do marxismo nos anos 60. O leninismo como doutrina oficial do Partido Comunista soviético não correspondia com a produção de um pensamento à altura de nossas experiências revolucionárias.

Após a queda da União Soviética, vocês pensaram que o socialismo poderia cair em Cuba?

O grupo foi bastante coerente. Foram poucos os dissensos que se produziram tanto nos anos 70 como mais adiante, nos anos 80 e 90. Todos pensamos que a queda socialista coincidia com algumas de nossas inquietudes, não presumimos que tenhamos prognosticado o que iria acontecer, mas nossas inquietudes eram quanto ao caráter excessivamente escolástico do marxismo soviético implantado a partir dos anos 70 como doutrina oficial. Aí é que desaparece o pensamento crítico e nosso grupo. Não nos reprimiram, mas nos impuseram um limite para exercer o pensamento crítico. Tinha que ser um pensamento único.

E vocês já eram muito crítico da URSS.

Sim, nosso grupo, que se formou em um departamento de filosofia. Através da reflexão criticando a União Soviética. O Che criticou o modelo de modo mais integral por meio da prática e da política econômica. Não pudemos ter uma vinculação com o Che, porque este já estava envolvido no processo de saída, de dedicação às lutas guerrilheiras. Depois da desintegração do socialismo soviético, desse modelo, há um impacto muito forte no nível mundial nos países que pertenciam a esse sistema. No caso de Cuba é um impacto muito forte em muitos sentidos, em primeiro lugar, no econômico. Demonstrou-se que havíamos desenvolvido uma conexão que nos tornava mais dependentes. A partir de 1986, Cuba não pode honrar seus compromissos de dívida com os países credores ocidentais e se fecharam os créditos em divisas convertíveis, que implicavam 15% dos créditos e se paralisava 30% da economia. Isso fez com que a curva de crescimento cubana fizesse um planalto. A queda cubana começa com a queda do socialismo soviético; por conta disso, aumentou a dependência ineficiente. A capacidade importadora cubana no período 1991-1993 havia caído 80%. Esta queda também implica uma crise de paradigma. Qual é a hipótese do senso comum?

Que o socialismo fracassou.

Que fracassou no centro e que aqui não tem futuro. Há uma crise de paradigma e se suscita um debate sobre a questão de como salvá-lo.

Como se pode resgatá-lo?

É preciso reinventar o socialismo do século XXI. Primeiro, destaco que a solução para os problemas do mundo não passa por outro caminho que não seja o socialismo, o mundo do capital, não. Não pode ser um socialismo construído sobre os padrões do século XX. É preciso repensá-lo sobre a realidade que estamos vivendo. Retornar a Marx e estudá-lo criticamente. Mas Marx não nos dará a resposta a esta problemática, nem Lênin, nemFidel. A nova geração tem a obrigação de reagir diante dos desafios que a história coloca. Temos que viver o socialismo sobre uma base de reinvenção contínua, e estar dispostos a aplicar correções e experimentos.

Que diferença de liderança há entre os irmãos Castro?

Não há diferença ideológica, os dois são afins a um mesmo projeto de transformação revolucionária. A revolução cubana teve quatro figuras: Fidel,Raúl, o Che e Camilo Cienfuegos. Raúl talvez não tenha o gênio político de Fidel, mas é mais pragmático e mais administrativo. Raúl está disposto a avançar em um processo de reformas que flexibilize a estrutura da economia.

Raúl disse há pouco que o governo quer reduzir o emprego público e fomentar o trabalho por conta própria. Poderia haver mudanças substanciais na Ilha?

Houve muita reticência em avançar em um processo de reformas para um padrão de eficiência socialista. O padrão capitalista, pelo contrário, submete tudo ao lucro. Às vezes, há um excesso de prudência nos dirigentes cubanos.

Prudência naqueles que fizeram a revolução frente ao império? A prudência lhes veio com os anos?

Creio que sim. Dez anos me separam dos protagonistas. Teria que ter havido um processo mais seguro, mais confiável, mais sistemático de relevo geracional que não houve. Vemos que os mesmos líderes seguem governando e que continua se armando o aparelho sobre a base de uma presença muito forte da liderança dos anos 60.

Quando aparecem jovens, são afastados. O ex-chanceler Felipe Pérez Roque e o ex-vice-presidente Carlos Lage foram obrigados a renunciar no ano passado...

Essas decisões estiveram vinculadas a atos de corrupção ou enriquecimento indevido.

Cuba continua a ter problemas econômicos fundamentais. Por que não podem ser resolvidos?

A economia cubana tem um problema de desestruturação muito forte que é resultante da queda do campo socialista gerado pelo desamparo e o isolamento, combinado com as reformas que ao mesmo tempo geram correção e se superpõem com as anomalias. Tudo aquilo que possa não ser administrado pelo Estado tem que começar a encontrar as formas de outras estruturas. Vai-se rumo à racionalização de postos de trabalho na administração pública e à abertura de setores de pequenas e médias empresas, a formalizar tudo aquilo que não tem por que estar nas mãos do Estado. Isso vai contribuir para balancear o desemprego. Creio que é preciso avançar em processos mais efetivos de cooperativização. Propriedade familiar em alguns casos, cooperativas em outros.

No interior do país é preciso desenvolver as vias de uma propriedade comunitária local que também seja descentralizada e permita que os lucros fiquem e contribuam para o Estado com os impostos. Deveria se gerar um sistema de impostos com espírito socialista, conseguir que os que geram mais ingressos contribuam mais. O contrário do que acontece no capitalismo, onde o Estado costuma não tocar nos ricos para que se mantenham felizes e aperta os de baixo. Até que ponto Raúl tem um leque de soluções? Isso não sei. Até que ponto vai ter margem e tempo para aplicá-las? Também não sei.

Para um cidadão cubano, o quanto dá um salário para viver?

A economia cubana é muito sui generis, tem virtudes e irregularidades. Cria muitos amparos. O salário cubano significa muito pouco em termos monetários. Para ter uma alimentação básica existe uma cobertura, que diminuiu com as limitações produtivas. O cubano vive com 30 ou 40 dólares por mês, mas não tem que pagar nem se preocupar com a saúde e a educação; os serviços básicos como a água e o gás custam muito pouco. E penso que as gratuidades poderiam ser diferenciadas. E que alguns serviços, por exemplo, uma cirurgia estética como a implantação de mamas, poderia ser paga. O Estado criou um procedimento que é muito difícil de custear. Mas agora, dar marcha à ré é algo que a população não vai querer: não pagar a saúde ou a educação é visto como um direito inquestionável.

Por que não é possível ler meios alternativos de comunicação na Ilha?

Não estou de acordo em que não haja outras vozes, não é preciso ter medo do confronto. Deve-se poder defender as posições que se tem. Os cubanos se inteiram às vezes do que passa no país pela imprensa estrangeira. Mas os dirigentes não veem as coisas dessa maneira. É uma política que eu mudaria.

O que acha do socialismo do século XXI venezuelano?

São os dez primeiros anos em que Chávez faz um esforço para manter sob controle do Estado os setores empresariais, para afirmar um esquema de apoio popular para o sistema que está aplicando e para aplainar um caminho para uma possível sucessão. O projeto venezuelano está em uma fase inicial, não é exato, não se parece com outros, como os projetos que há na Bolívia e no Equador.

Tinha alguma expectativa com Barack Obama?

Obama é o mesmo em objetivos que Bush, com o agravante de que é inteligente e sagaz. A mudança latino-americana é progressiva em geral, para falar também da Argentina o kirchnerismo – mesmo que não seja a revolução bolivariana nem a revolução cidadã do Equador, mas é uma mudança positiva que se entronca. A Argentina se encheu de glória na cúpula de Mar del Plata quando Néstor Kirchner defendeu a posição de bloqueio à iniciativa norte-americana da ALCAcomo projeto continental. Os Estados Unidos trataram de buscar vias laterais, mas o obstáculo que os povos latino-americanos lhes impuseram não tem precedentes. Imagina o que seria agora enfrentar esta crise se os países tivessem entrado na ALCA. Estaríamos perdidos. Diante de toda esta mudança, a Administração Bush ficou de mãos atadas. E Obama chega à presidência e faz um acordo com a Colômbia para instalar sete bases militares. E deixa que se orquestre um golpe de Estado em Honduras. Nossos países têm que dar a volta por cima no momento em que Obama quer esconder ou dissimular sua posição e aproveitá-la.

Então, do seu ponto de vista, não há nenhuma possibilidade de que se levante o embargo.

Não. Se isso acontecer, seria porque há uma pressão que não se possa conter. Pode ser que lhe convenha suavizar alguns pontos do embargo. Também se Obama for pressionado dentro dos Estados Unidos. Há muitos norte-americanos que querem viajar a Cuba. Seria uma medida para melhorar sua imagem no país.

Por conta dos sinais que a Ilha deu com estas libertações de presos que mencionamos no começo, com a passagem por Havana do chanceler espanhol Miguel Angel Moratinos, poderia a Europa modificar sua posição comum?

A Espanha tem uma posição boa com Cuba dentro da comunidade europeia. A Europa teria que estar disposta a ocupar um protagonismo que lhe custa assumir frente aos Estados Unidos. Melhorar a relação com Cuba seria estar disposto a realizar um gesto de soberania europeia dentro do concerto das forças mundiais. Vamos pensar em voz alta: talvez se Obama fizesse algum gesto de flexibilização, a Europa tomaria esse caminho.

Fonte: IHU

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