Quem foi Hipácia, matemática, astrônoma e uma das mais importantes pensadoras da Antiguidade, morta por cristãos
Numa tarde de março do ano 415, durante
a quaresma, uma mulher de 60 anos é tirada de sua carruagem por uma multidão
enfurecida e arrastada até a igreja de Cesarión, antigo templo de culto ao
imperador romano César, em Alexandria, no Egito. Lá é despida e tem sua pele e
carne arrancadas com ostras (ou fragmentos de cerâmica ou azulejo, segundo
outra versão). Acusada de bruxaria, é destroçada viva pela turba desgovernada.
Já morta, arrancam seus braços e pernas. O restante do cadáver é queimado em
uma pira nos arredores da cidade. Era o fim da trajetória impressionante da
primeira mulher matemática da História e uma das principais filósofas da
Antiguidade: Hipácia.
A intelectual, professora carismática
que inspirou alguns dos grandes cérebros de seu tempo, tinha influência em
diversas esferas da vida pública. O prefeito da cidade, Orestes, indicado por
Roma, a consultava antes de muitas de suas decisões. Por isso mesmo, ela
tornou-se um obstáculo para a sede de poder de Cirilo, bispo de Alexandria,
inimigo político do também cristão Orestes e, possivelmente, o mentor do
assassinato da filósofa. Quem foi essa mulher, capaz de se destacar num mundo
em que o intelecto era propriedade masculina? Há controvérsia sobre o ano de
seu nascimento: 355 é o mais aceito. Fala-se também em 370. Nesse caso, ela
teria apenas 45 anos ao ser linchada. Foi criada pelo pai, Teón - grande
matemático, astrônomo e diretor do Museu de Alexandria -, nesse ambiente de
estudo e pesquisa. Ela superou o mestre na ciência dos números e ainda
tornou-se uma expoente do pensamento filosófico neoplatônico. É considerada a
última intelectual de destaque da capital egípcia, centro da cultura grega no
mundo helenístico.
Nascida numa cidade em que diversas
religiões conviviam, ela era pagã. Pouco ia ao templo. Tinha entre seus pupilos
muitos alunos cristãos, como Sinésio de Cirene, futuro bispo de Ptolemaida.
Suas cartas para Hipácia e outros discípulos são o principal registro sobre
ela, a quem adorava. A religião nunca foi um empecilho entre eles.
No momento em que vive Hipácia, temos uma
sociedade em tensão por causa das mudanças político-religiosas. Há vários
relatos sobre hostilidades entre judeus e cristãos e cristãos e pagãos. A
relativa tolerância religiosa de outrora foi inteiramente abalada pelo
radicalismo. Seitas foram expulsas de Alexandria e, cada vez mais, a população
era insuflada contra elementos de destaque que poderiam ser considerados uma
ameaça à expansão de poder do cristianismo
acima: filme Alexandria, que conta a história de Hipácia e da Biblioteca de Alexandria.
Por causa de suas idéias científicas pagãs, como por exemplo a de que o Universo seria regido por leis matemáticas, Hipácia foi considerada uma herética pelos chefes cristãos da cidade. A admiração e protecção que o político romano Orestes dedicou a Hipácia pouco adiantou, e acirrou ainda mais o ódio do bispo Cirilo por ela e, quando este se tornou patriarca de Alexandria, iniciou uma perseguição sistemática aos seguidores de Platão e colocou-a à encabeça da lista.
Assim, numa tarde de 415 d.C, a ira dos cristãos abateu-se sobre Hipácia. Quando regressava do Museu, foi atacada em plena rua por uma turba de cristãos enfurecidos, incitados e comandados por “São” Cirilo. Arrastada para dentro de uma igreja, foi cruelmente torturada até a morte e ainda teve seu corpo esquartejado e queimado.
O historiador Edward Gibbon escreve: “Num dia fatal, na estação sagrada de Lent, Hipácia foi arrancada de sua carruagem, teve suas roupas rasgadas e foi arrastada nua para a igreja. Lá foi desumanamente massacrada pelas mãos de Pedro, o Leitor, e sua horda de fanáticos selvagens. A carne foi esfolada de seus ossos com ostras afiadas e seus membros, ainda palpitantes, foram atirados às chamas”.
Pouco depois, a grande Biblioteca de Alexandria seria destruída e muito pouco do que foi aquele grande centro de saber sobreviveria até os dias de hoje.
ABAIXO: Vídeo retirado da série COSMOS, onde Carl Sagan conta a história de Hipácia.
ABAIXO: Vídeo retirado da série COSMOS, onde Carl Sagan conta a história de Hipácia.
A Biblioteca de Alexandria foi construída por Ptolomeu I no século IV a.C. Após a decadência de Atenas como centro cultural, Alexandria tornou-se o grande pólo da cultura helenística. Todo e qualquer manuscrito que entrava no país (trazido por mercadores e filósofos de toda a parte do mundo [comprado ou pedido de empréstimo]) era classificado em catálogo, copiado e incorporado ao acervo da biblioteca. No século seguinte à sua criação, a biblioteca já reunia entre 500 mil e 700 mil documentos. Além de ser biblioteca, no actual sentido, foi também a primeira universidade, onde se formaram grandes cientistas, como os gregos Euclides e Arquimedes.
Os eruditos encarregados da biblioteca eram considerados os homens mais capazes de Alexandria. Zenódoto de Éfeso foi o primeiro bibliotecário e o poeta Calímaco fez o primeiro catálogo geral dos livros. Os bibliotecários mais notáveis foram Aristófanes de Bizâncio (c. 257-180 a.C) e Aristarco da Samotrácia (c. 217-145 a.C).
Ótimo texto. Já vi o filme e já havia lido sobre ela também. Foi uma grande mulher, um exemplo de pessoa, e não apenas de mulher, que deveria ser passado de geração em geração.
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