sábado, 3 de setembro de 2011


Os reflexos sócio-culturais do latifúndio no Rio Grande do Sul

Éric gediel vargas*

Professor da rede pública estadual em Alegrete-RS, Graduado em História pela Unopar. Email: erikbomberman@yahoo.com

Os reflexos sócio-culturais do latifúndio no Rio Grande do Sul

The socio-cultural consequences of the landlordism in the Rio Grande do Sul

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo geral compreender o processo de dominação ideológica que o latifúndio exerce no RS, bem como: conhecer os processos de formação da ideologia do gauchismo, compreender como o gauchismo trabalha para a manutenção do latifúndio e conhecer a sua utilização como estanque da luta de classes. Tais compreensões são encontradas com uma análise histórica sobre como se sedimentaram as bases para a formação da Ideologia Tradicionalista e como ela se sedimentou nos extratos da cultura popular. Observam-se as influências positivistas que norteiam as bases do tradicionalismo, bem como as condições criadas historicamente pela estrutura em sua relação dialética com a superestrutura, que culminaram no atual modelo hegemônico do Tradicionalismo. São analisadas as facetas que compõem a construção da apologética do passado ideal criado e cultuado pela ideologia latifundiária dominante no estado do Rio Grande do Sul.

Palavras-chave: Latifúndio. Tradicionalismo. Ideologia. Estância. Positivismo.

VARGAS, Éric Gediel. Las consecuencias socio-culturales de las Explotaciones grandes en Río Grande do Sul: Alegrete 2010

ABSTRACT

Este trabajo tiene como objetivo comprender el proceso general de dominación ideológica que tiene las grandes explotaciones en la RS. Así como entender los procesos de formación de la ideología de gauchismo entender cómo el gauchismo obras para el mantenimiento de la grande explotacion, y conocer su uso como una lucha de clases estancas. Estos entendimientos se encuentran con un análisis histórico de cómo las bases se consolidaron para formar la ideología tradicional, y se consolidó en los extractos de la cultura popular. Tenga en cuenta las influencias que guían los fundamentos positivistas del tradicionalismo, así como las condiciones históricas creadas por la estructura en su relación dialéctica con la superestructura, que culminó en el actual modelo hegemónico del tradicionalismo. Se analizan las facetas que componen la construcción de la apologética del pasado y hacer ideales creados adorado por los terratenientes ideología dominante en el estado de Rio Grande do Sul.

Key-words: Grandes explotaciones. Tradicionalismo. Ideología. Oficina. El positivismo.

Uma construção histórico ideológica

O latifúndio, palavra derivada do latim, latinfundiu, é uma grande extensão de terras nas mãos de poucos donos, muitas vezes somente de um único proprietário. Forma de designar grandes propriedades que produzem pouco; utilizam-se de métodos produtivos obsoletos; de mão de obra barata que, em geral, não possuem as características de uma moderna propriedade capitalista, apesar, é claro, de se inserir neste modo de produção, peca, no entanto, por não possuir um dinamismo produtivo que o faça competitivo, assim, necessita constante e historicamente de financiamentos e empréstimos governamentais para manter-se.

O latifúndio é marca indelével da região da campanha no estado do Rio Grande do Sul, pois a geografia desta região, marcada por grandes extensões de campos abertos fora ideal para o contexto histórico da formação desta forma de propriedade no estado.

A introdução da pecuária como principal atividade do latifúndio, ou estância como se chama no RS, começou com Cristóbal de Mendonza, padre jesuíta que, no ano de 1634, trouxe da Argentina 1500 cabeças de gado, que distribuiu a criadores, com o objetivo de conter a fome que assolava os povos catecúmenos. As grandes extensões destas estâncias podem ser explicadas pelo fato de que seus limites eram estabelecidos por rios e acidentes geográficos e muito dificilmente se realizava a construção de cercas de pedra e/ou fossas para que o gado não ficasse totalmente livre.

Se tomarmos por base esta apresentação do início do latifúndio no RS, poderemos observar o início das bases para o enraizamento do latifúndio na cultura Rio-grandense.

As estâncias nunca foram indutoras de desenvolvimento ao estado, mesmo em seu auge, pois o estado até o advento de suas incipientes indústrias era bastante atrasado, o próprio estabelecimento da pecuária, como já dito, fora fruto de uma necessidade dos jesuítas em garantir uma fonte de alimentos. Tal característica não se modificou durante o período em que se estabeleceram as condições necessárias para que o latifúndio gaúcho se tornasse economicamente importante para a economia do estado. Sobre estas condições, assim explica Mário J. Maestri Filho (1993, p.39):

O começo de uma produção industrial de charque no sul parece dever-se às sucessivas secas de 1777, 1779, 1792, no nordeste. Até essa época, era o Ceará que fornecia a carne seca, um dos alimentos básicos do escravo, para o mercado nacional e internacional.

Observamos, assim, que esta elite formada pelos latifundiários, no RS, nunca fora uma classe empreendedora, desenvolvimentista para o estado. Sendo assim, os latifundiários/estancieiros gaúchos, depois de construídas suas bases na economia local e de se tornarem a classe dominante do estado, precisavam manter o seu poder de forma a repassar a sua visão de mundo a todas as classes sociais existentes no estado. Tendo uma base econômica que justificasse seu domínio, já que a economia estadual era majoritariamente pastoril, buscava-se agora criar no estado um universo imagético/cultural, onde todas as classes compartilhassem da mesma visão de mundo, ou seja: “exploradores e explorados defendem os mesmos princípios na compreensão do mundo” (GOLIN, 1983, p.13).

Este movimento de dominação por meio da difusão de uma cultura que refletisse a visão de mundo do latifúndio típico do sul do estado determinou a criação de um movimento cultural conhecido como tradicionalismo. O tradicionalismo é um meio de dominação da classe que detinha o poder emanado em sua dominação econômica, sendo assim, este movimento cultural se encontra fazendo parte da superestrutura, estando relacionado com todos os meios de sustentação desta elite agrária. Sendo um meio de dominação cultural, o movimento tradicionalista precisava dos intelectuais regionais a seu serviço, somente assim poderia alcançar abrangência necessária para se enraizar na cultura popular, pois os intelectuais atuam, nos mais diversos meios populares de difusão de ideais, tais como: sindicatos, igrejas, partidos políticos, na educação e nas mais diversas formas de atividades populares.

O tradicionalismo cria uma aura de valores sobre o passado gaúcho que nada tem de encontro com a realidade, é nada menos que uma auto-imagem míope que as classes estancieiras têm de si mesmas, colocam a estância histórica como um exemplo máximo de democracia e de camaradagem nas relações sociais. Ora, como encarar como uma base de cordialidade uma unidade econômica produtiva que se utilizava de mão de obra escrava? E sendo assim, como imaginar tal cordialidade entre senhores e seus escravos? Ou até mesmo entre patrões e peões? Uma relação entre o democrático e o autocrático? Sendo assim, é evidente a reconstrução da história do RS por meio de uma visão apologética da história, onde se resgatam valores nunca existentes, ou seja, reconstrói-se a história com base nos julgamentos morais da atualidade.

Essa dominação cultural estancieira atinge todas as formas em que a superestrutura se apresenta, caracterizando-se assim como uma ideologia, ou seja, a sua difusão tem por base a contensão da luta de classes, pois é embebida de valores de uma classe que tem por intuito retirar qualquer chance de outras classes criarem sua própria consciência.

Sobre a ideologia, Portelli (1993, p.421) diz o seguinte:

A ideologia é o cimento dominante, mas marca também as classes dominadas (impregnando o folclore), ela imprime sua marca ao conjunto das superestruturas políticas, religiosas, culturais e científicas e irriga o conjunto da sociedade civil. Uma classe social, portanto, só pode pretender a hegemonia se dispuser de ideologia própria, orgânica e, principalmente, de uma ideologia cujo nível mais elaborado (a filosofia) possa rivalizar vitoriosamente com outras concepções de mundo.

No ano de 1827, surge o primeiro jornal do estado, com apoio do então Presidente da província, Salvador José Maciel, brigadeiro, que assim selava o início da imprensa no estado, imprensa essa que surge, seu primeiro momento, já atrelada às aspirações de uma classe, já atrelada ao poder. Nesse contexto, surge no estado a literatura, meio que iria sedimentar o tradicionalismo na história cultural do estado.

Na segunda metade do século XIX, com o findar quase total, dos conflitos territoriais, e início do que era ainda uma germinação de luta de classes, esta iniciada pelos imigrantes europeus e a classe dominante, tendo de aprofundar sua dominação ideológica para justificar a sua concepção de mundo e, ao mesmo tempo, fazer com que as classes subalternas também as seguissem em seus preceitos, nesse contexto, fora criado o Paternon Literário, em 1868, em torno, principalmente, de dois fundadores, Caldre e Fião e Apolinário Porto Alegre. Este era o início do regionalismo no RS, uma literatura que detinha todos os aspectos caracterizadores do estado, explorando as tradições gaúchas como um todo, assim, os ideais das classes dominantes foram eternizados sob um manto cultural.

O regionalismo gaúcho, assim como todas as formas de regionalismo que ocorreram nas diversas regiões do Brasil, buscava transplantar para a literatura os conceitos culturais regionais, a exceção era que, no RS, a intenção era eternizar e vulgarizar os valores regionais, seguindo a cartilha dos ideólogos da classe latifundiária dominante. E transplantava-se essa cultura ao mundo da literatura, trazendo consigo toda uma visão apologética das realidades do estado. “Conforme Apolinário Porto Alegre, ao Paternon se procurou “dar uma forma que outrora se ostentou em Atenas” (GOLIN, 1983, p.22).

A literatura proveniente dos intelectuais do Partenon era uma apologia à visão positivista da história, a mesma visão com que as oligarquias latifundiárias envergavam o passado. “Neste sentido, ganharam impulso os registros folclóricos, o culto às tradições e uma preocupação prioritária com os ‘heróis’ e datas cívicas” (GOLIN, 1983, p. 22).

Engana-se quem achar que os intelectuais que formavam o Paternon Literário eram provenientes das classes dominantes, muito pelo contrário, eles eram todos provenientes das classes subalternas, eles eram pobres. O que ocorria era uma verdadeira venda de consciência em troca de uma escalada social, pois todos se utilizaram de seu domínio sobre a literatura como uma alavanca social. Seu trabalho ajudou a criar as condições necessárias à criação, logo mais, do movimento tradicionalista.

No mesmo ano, 1898, é fundado em 22 de maio, na cidade de Porto Alegre, o Grêmio Gaúcho. Inspirado nas idéias do Partenon literário e nas Sociedades Crioulas que existiam no Uruguai, João Cezimbra Jacques, um major, republicano e positivista, cria essa entidade com o intuito de cultuar as tradições gaúchas, tendo como herói e símbolo máximo, o general da revolução Farroupilha, Bento Gonçalves da Silva. Assim sendo, o símbolo máximo deste movimento era um militar/latifundiário.

Uma consolidação superestrutural.

No ano de 1948, o tradicionalismo se reorganiza por meio de um movimento iniciado no colégio Júlio de Castilhos. Liderado por Barbosa Lessa e Paixão Cortes, tinha por objetivo organizar, criar um clube de apologia às ditas “tradições gaúchas”, deste movimento, surgem os CTGs, os Centros de Tradições Gaúchas, que em sua organização já demonstram uma estrutura administrativa que imita a estrutura de poder da estância. Esta estrutura tem, por exemplo, como principal diretor o patrão, seguido do capataz, este do sota capataz e depois pelos posteiros. Em um primeiro momento, os militares presentes nestas organizações eram somente os pertencentes à brigada militar, pois na revisão historiográfica das idéias separatistas, provenientes da má interpretação da Revolução Farroupilha, afastaram os militares do exército, fato hoje superado pelos membros de instituições militares sediadas no estado, pois praticamente todas as unidades militares hoje contam com um “galpão crioulo” dentre suas instalações.

Deste modo, o tradicionalismo unifica as aspirações de heterogêneas partes da sociedade em torno de ideais comuns, quebrando assim aspirações de classe, mantendo a visão de mundo estancieira e, conseqüentemente, mantendo o latifúndio intocável.

O Tradicionalismo corresponde, assim, a uma forma mais que explícita de manter as massas populares a cabresto, sem uma crítica própria sobre o mundo objetivo a sua volta. O Tradicionalismo joga as massas populares para um mundo imaginário, onde as negatividades do mundo das contradições provenientes da práxis capitalista são imperceptíveis; sendo assim, as massas populares são condenadas a uma imobilidade no âmbito da luta de classes.

O Tradicionalismo reproduz valores de uma realidade histórica ligada a um passado de supremacia do latifúndio e toda a vez que se tenta deixar este aspecto bem claro à totalidade das massas, o movimento entra em erupção, pois tenta esconder suas contradições e reais intenções, camuflando-as como parte da cultura popular.

Não é porque determinadas práticas e representações sejam encontradas no “povo”, isto é, nas classes subalternas, que elas são do povo. A cultura popular , ao contrário do que muitos querem, não é composta apenas de elementos de resistência, mas é também composta de elementos de conformismo. (FONSECA, 1994, P.59)

Assim sendo, cada indivíduo que compõe a sociedade, ao aderir a tal movimento, está, mesmo que de forma manipulada, cumprindo sua função de agente social/intelectual, como afirma Gramsci (1992, p.7-8):

[...] todo homem, fora de sua atividade profissional, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um “filósofo”, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção do mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui para manter ou para modificar uma concepção do mundo.

É nas chamadas Região da Fronteira e Fronteira Oeste que o latifúndio exerce sua poderosa influência, nesses locais, há uma grande influência do Movimento Tradicionalista, a ponto de agir sobre o modo de agir e pensar das populações que ali habitam.

Assim o tradicionalismo se abate sobre todas as formas de luta de classes existentes nessas regiões, a ponto de sufocar, por meio se sua ideologia, qualquer foco de obtenção de consciência de classe.

[...] a arte tradicionalista não reflete o peão na sua forma real, como ela realmente se estrutura socialmente, mas sim como o patrão gostaria que fosse. Há a dominância de um naturalismo-positivo, ainda do tempo da conquista, quando o conflito do homem com a natureza superava o do homem com o homem. O maior exemplo nos traz a cidade de Alegrete. Os tradicionalistas levantaram-se, indignados, contra o monumento ao Negrinho do Pastoreio, de Vasco Prado, erguido na Praça Rui Ramos. [...] O talento do artista mostra a realidade do campo rio-grandense. (GOLIN, 1983, p.93-4)

“O cavalo, com formas desproporcionais, mostra que o animal é mais valorizado que o homem, o qual é representado pelo Negrinho, com uma cabeça reduzida, dado ao seu subdesenvolvimento intelectual; a barriga côncava por que tem fome, porque é subnutrido, e seus braços erguidos pedem paz e mostram que ele se libertou dos grilhões que o prendiam a uma economia [...], enquanto que o cavalo alça vôo em direção a Usina Termoelétrica Oswaldo Aranha, localizada perto da praça, que representa um marco de desenvolvimento da região.” (CORREIO DO POVO,1977 apud GOLIN, 1983, p.94)


Referencias bibliográficas:

FONSECA; Virginia Pradelina da Silveira; A hegemonia do latifúndio pastoril e sua relação com a pequena propriedade na fronteira oeste do Rio Grande do Sul; 1994, 139 F; Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Faculdade de História, pós graduação em Sociologia; UFSM; Santa Maria; 1994

GRAMSCI, Antonio; Os intelectuais e a organização da cultura; Rio de Janeiro; Civilização Brasileira; 1992.

GOLIN, Tau; A ideologia do gauchismo; Porto Alegre; Tche; 1983.

MAESTRI FILHO, Mário J. “O escravo africano no Rio Grande do Sul.”, in: DACANAL, José Hildebrando & GONZAGA, Sergius. RS: economia e política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.

PORTELLI, Nughes; Antonio Gramsci, Cadernos da prisão; Rio de Janeiro;Civilização Brasileira; 1993.

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